sexta-feira, 26 de abril de 2019

ARTIGO SOBRE XADREZ



Somos uma família?

                                                 Por Luiz Fábio Alves Jales

            Quando a Federação Internacional de Xadrez (FIDE) foi criada, em Paris, no ano de 1924, seus membros fundadores elegeram como lema da entidade o slogan Gens una sumus, uma expressão oriunda da língua latina que quer dizer “somos uma família” ou “somos uma raça”. Tal lema procura enfatizar o sentimento de união e de fraternidade que deveria existir entre todos os praticantes do jogo-arte-ciência, em todas as partes do mundo, independentemente do nível técnico, do nível social, do sexo1, da idade, da raça, do credo religioso ou de quaisquer outros fatores.

            Ratificando esse pensamento, o famoso campeão estadunidense Frank Marshall, um dos mais fortes enxadristas do mundo nas duas primeiras décadas do século XX, uma época em que ainda predominava nas disputas de xadrez uma certa postura cavalheiresca, afirmou que “o xadrez não é somente o mais cosmopolita de todos os jogos, mas é também o mais democrático. Um enxadrista é sempre bem-vindo em qualquer parte do mundo, independentemente de sua condição social ou financeira”.

            Essa conduta cavalheiresca no xadrez, infelizmente, ficou esquecida no passado. À medida que o século XX ia avançando e iam se consolidando as bases profissionais do esporte, uma animosidade cada vez mais acirrada encarregou-se de revelar a fragilidade do lema da FIDE. Inicialmente, casos de inimizades entre enxadristas (Tarrasch e Lasker, Capablanca e Alekhine, Kortchnoi e Petrosian, Karpov e Kasparov etc.) foram destruindo o clima de harmonia e de fraternidade que deveria prevalecer no mundo do xadrez. Mais tarde, questões políticas e ideológicas se juntaram à causa anterior e contribuíram para agravar a discórdia entre jogadores e até entre nações, como aconteceu no período da chamada Guerra Fria, em que os capitalistas ocidentais e os socialistas soviéticos se digladiavam ferozmente na luta pela supremacia enxadrística.

            Por fim, mais recentemente, surgiu no cenário internacional do xadrez um novo motivo de conflito: o ódio motivado por intolerância religiosa. No celebrado torneio Grenke Chess Classic 2019, que está sendo disputado na Alemanha e que envolve representantes da elite do xadrez mundial, um episódio ocorrido na 3ª rodada da competição despertou polêmica e atraiu novamente a atenção da comunidade enxadrística para esse tipo de problema.         

            A situação foi a seguinte: o prodígio iraniano Alireza Firouzja, de apenas 15 anos e quase 2700 pontos de rating (!), depois de começar o torneio com duas vitórias consecutivas, decidiu não comparecer para jogar a terceira partida. A razão para isso é que ele havia sido emparceirado com o MF Or Bronstein (ELO 2387), um enxadrista israelense. As leis do Irã, uma teocracia islâmica, proíbem iranianos de jogar contra israelenses, em uma atitude de clara infração às regras da FIDE, que, em suas normas regulamentares, declara “rejeitar integralmente tratamentos discriminatórios em função de questões nacionais, políticas, raciais, sociais, religiosas ou sexuais”. Se tivesse jogado a partida, o GM Firouzja estaria sujeito a pesadas sanções por parte das autoridades do seu país, o que poderia colocar um fim a sua promissora carreira.

GM Alireza Firouzja durante a 1ª rodada do Grenke Chess Classic 2019


Analistas tentam passar ao público a ideia de que esse tipo de boicote se dá por razões políticas, uma vez que Irã e Israel são inimigos históricos. Os dois países vivem em estado de beligerância há décadas, isso porque tanto o Irã quanto os demais países do Oriente Médio, todos de maioria muçulmana, não aceitam a criação do Estado de Israel, promovida por iniciativa da ONU, em 1948. Vale destacar que Israel ocupa apenas 0,1% do território do Oriente Médio; os restantes 99,9% do território são controlados pelos árabes muçulmanos - ou seja, tal hostilidade definitivamente não é motivada por uma disputa territorial.

Como muitos erroneamente pensam, a questão central do conflito não é de origem geopolítica, mas sim religiosa. A religião islâmica, como todos sabem, está fundamentada nos preceitos contidos no Corão (ou Alcorão), livro considerado sagrado pelos muçulmanos. O que talvez nem todos saibam é que o Alcorão está repleto de mensagens e de ordens incitando o ódio, a perseguição e a violência contra os ditos “infiéis”, que são todos aqueles que não professam o Islamismo. Os judeus são especialmente odiados, sendo designados no Alcorão pelas palavras “porcos” e “macacos”, animais que simbolizam a impureza e a imundície. Tal nível de anti-semitismo é comparável ao que vigorava no regime nazista, o qual produziu milhões de vítimas no holocausto judeu.

Devemos ter em mente que o Islamismo não é uma religião como as outras; trata-se de um sistema doutrinário completo, pois fornece diretrizes que regem todos os aspectos da vida dos indivíduos, desde a alimentação e o vestuário até o sistema de leis. Leis estas que, em vários casos, determinam a aplicação da pena de morte como punição para aqueles que as transgredirem.

Vivendo em uma sociedade tão severa e que prega o ódio a tudo o que é diferente, não é de se admirar que o jovem Firouzja tenha se amedrontado e optado por não jogar com o MF Bronstein; isso é plenamente compreensível, afinal é preferível para um jogador do Irã perder uma partida a ter que sofrer represálias quando voltar para o seu país. Porém, ao que tudo indica, o GM iraniano não ficou satisfeito por ter praticado o forfait2, visto que, na rodada seguinte, ele perdeu para uma jogadora de nível bem inferior, a alemã Antonia Ziegenfuss (ELO 1945), depois de deixar uma torre pendurada. A opinião geral é a de que a derrota frente à enxadrista alemã foi proposital; esse teria sido o modo de Firouzja protestar por ter sido obrigado a entregar a partida contra o MF israelense, fato que prejudicou suas pretensões de vencer o Grenke Chess Classic ou de pelo menos ficar o mais bem classificado possível na competição.

MF Or Bronstein (Israel) e Antonia Ziengefuss (Alemanha)

Posição da partida Firouzja vs. Ziegenfuss. Em sua vez de jogar, o iraniano fez o horrível movimento 36. Txe6??, que permitiu a captura da torre de d4.

É certo que a FIDE, como entidade responsável pela organização de torneios internacionais, está ciente das tensões existentes entre as teocracias islâmicas e o Estado de Israel, bem como dos boicotes protagonizados pelos enxadristas iranianos contra os israelenses. É sabido, igualmente, que o emparceiramento dos torneios, em certas ocasiões, é manipulado, justamente para evitar confrontos de jogadores israelenses com jogadores de países que os boicotam. Sinceramente, acho isso lamentável. Ao invés de manipular os emparceiramentos, a FIDE deveria, como órgão máximo do xadrez mundial, fazer cumprir suas normas internas e desclassificar automaticamente das competições os jogadores que insistissem em cometer o forfait. Essa seria uma forma de pressionar o Irã e outros países muçulmanos a rever sua condenável postura de anti-semitismo no âmbito esportivo.

Quanto ao GM Alireza Firouzja, quero crer que ele é apenas uma vítima do sistema tirânico e perverso ao qual está submetido, e que não nutre ódio pelos judeus israelenses. Irei torcer para que ele não tenha sua carreira prejudicada pela insanidade dos líderes do seu país. Se isto acontecer, será muito triste para ele e para o xadrez, já que Firouzja, apesar da juventude, já é o jogador mais forte em atividade no Irã e também o número um do mundo na sua faixa etária! Alguns especialistas projetam para ele uma trajetória brilhante, acreditando inclusive que ele tem chances de se tornar Campeão Mundial de xadrez em um futuro não tão distante.

E, por falar em futuro, sonho que chegará o dia em que teremos um mundo de paz e de fraternidade entre os homens, sem fome, sem guerras e sem intolerância religiosa ou de qualquer natureza. Um mundo em que possíveis desavenças sejam resolvidas unicamente na base do diálogo, e não da violência. Um mundo em que o xadrez esteja acessível a um número muito maior de pessoas, que se deixarão encantar pelas belezas e mistérios desse jogo milenar. Enfim, um mundo em que os praticantes da Arte de Caíssa realmente façam parte de uma irmandade global, em que cada enxadrista possa dizer, com alegria e convicção: “Gens una sumus”!


Notas:

1 - Sexo: O autor do artigo utiliza a palavra “sexo” em lugar do termo “gênero”, amplamente empregado na atualidade, por entender que o uso do referido termo corrobora a falaciosa e anti-científica Teoria Queer ou Teoria de Gênero, segundo a qual a identidade sexual ou de “gênero” dos indivíduos são resultado de uma construção social, e que, portanto, não existem papéis sexuais biologicamente definidos na espécie humana. Obviamente, essa ideia consiste em uma verdadeira afronta à Biologia e já foi devidamente refutada por inúmeros estudiosos de diversas áreas da ciência.


2 - Forfait: Vocábulo francês que significa perda de uma partida por não-comparecimento.



Fontes de Pesquisa:


FILGUTH, Rubens. Xadrez de A a Z: dicionário ilustrado. Porto Alegre: Artmed, 2005.


GARCIA, Leontxo. Menores obligados a perder al ajedrez. Disponível em: https://elpais.com/deportes/2019/04/23/la_bitacora_de_leontxo/1556010581_673588.html?fbclid=IwAR0MIQ_8RLLvpExMzswBrMC_yGnbonPT-dp-fE3X5pp9uwr-chI7SH8dPDI


HORTON, J. Byrne et. al.Moderno dicionário de xadrez. São Paulo: Editora Theor S/A, 1973.


MANZANO, A. L.; GONZÁLEZ, J.M. O xadrez dos Grandes Mestres: 400 conselhos para melhorar seu nível enxadrístico.Porto Alegre: Artmed, 2002.


MORGENSTEIN, Flávio. Egípcio que não cumprimentou israelense: nada a ver com o islamismo? Disponível em: http://sensoincomum.org/2016/08/12/egipcio-nao-cumprimentou-israelense/


MOURA, Isabella Mayer. 4 questões para entender o confronto entre Israel e Irã. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/4-questoes-para-entender-o-confronto-entre-ira-e-israel-a8ff0x66773foigu0poajz7m6/


PAI, Aditya. Grenke Open: Iranian star hands free point to Israeli. Disponível em: https://en.chessbase.com/post/iranian-gm-alireza-firouzja-forfeits-game-due-to-opponent-or-bronstein-s-israeli-nationality-at-grenke-chess-open


Site da FIDE: https://www.fide.com/.


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