Por
Luiz Fábio Alves Jales
Quando a Federação Internacional de
Xadrez (FIDE) foi criada, em Paris, no ano de 1924, seus membros fundadores
elegeram como lema da entidade o slogan Gens
una sumus, uma expressão oriunda da língua latina que quer dizer “somos uma
família” ou “somos uma raça”. Tal lema procura enfatizar o sentimento de união
e de fraternidade que deveria existir entre todos os praticantes do
jogo-arte-ciência, em todas as partes do mundo, independentemente do nível
técnico, do nível social, do sexo1, da
idade, da raça, do credo religioso ou de quaisquer outros fatores.
Ratificando
esse pensamento, o famoso campeão estadunidense Frank Marshall, um dos mais
fortes enxadristas do mundo nas duas primeiras décadas do século XX, uma época
em que ainda predominava nas disputas de xadrez uma certa postura cavalheiresca,
afirmou que “o xadrez não é somente o mais cosmopolita de todos os jogos, mas é
também o mais democrático. Um enxadrista é sempre bem-vindo em qualquer parte
do mundo, independentemente de sua condição social ou financeira”.
Essa
conduta cavalheiresca no xadrez, infelizmente, ficou esquecida no passado. À
medida que o século XX ia avançando e iam se consolidando as bases
profissionais do esporte, uma animosidade cada vez mais acirrada encarregou-se
de revelar a fragilidade do lema da FIDE. Inicialmente, casos de inimizades
entre enxadristas (Tarrasch e Lasker, Capablanca e Alekhine, Kortchnoi e
Petrosian, Karpov e Kasparov etc.) foram destruindo o clima de harmonia e de
fraternidade que deveria prevalecer no mundo do xadrez. Mais tarde, questões
políticas e ideológicas se juntaram à causa anterior e contribuíram para
agravar a discórdia entre jogadores e até entre nações, como aconteceu no
período da chamada Guerra Fria, em que os capitalistas ocidentais e os
socialistas soviéticos se digladiavam ferozmente na luta pela supremacia
enxadrística.
Por
fim, mais recentemente, surgiu no cenário internacional do xadrez um novo
motivo de conflito: o ódio motivado por intolerância religiosa. No celebrado
torneio Grenke Chess Classic 2019, que está sendo disputado na Alemanha e que
envolve representantes da elite do xadrez mundial, um episódio ocorrido na 3ª
rodada da competição despertou polêmica e atraiu novamente a atenção da
comunidade enxadrística para esse tipo de problema.
A
situação foi a seguinte: o prodígio iraniano Alireza Firouzja, de apenas 15
anos e quase 2700 pontos de rating (!), depois de começar o torneio com duas
vitórias consecutivas, decidiu não comparecer para jogar a terceira partida. A
razão para isso é que ele havia sido emparceirado com o MF Or Bronstein (ELO
2387), um enxadrista israelense. As leis do Irã, uma teocracia islâmica,
proíbem iranianos de jogar contra israelenses, em uma atitude de clara infração
às regras da FIDE, que, em suas normas regulamentares, declara “rejeitar
integralmente tratamentos discriminatórios em função de questões nacionais,
políticas, raciais, sociais, religiosas ou sexuais”. Se tivesse jogado a
partida, o GM Firouzja estaria sujeito a pesadas sanções por parte das autoridades
do seu país, o que poderia colocar um fim a sua promissora carreira.
GM Alireza Firouzja durante a 1ª rodada do Grenke Chess Classic 2019 |
Analistas tentam passar ao público
a ideia de que esse tipo de boicote se dá por razões políticas, uma vez que Irã
e Israel são inimigos históricos. Os dois países vivem em estado de
beligerância há décadas, isso porque tanto o Irã quanto os demais países do
Oriente Médio, todos de maioria muçulmana, não aceitam a criação do Estado de
Israel, promovida por iniciativa da ONU, em 1948. Vale destacar que Israel
ocupa apenas 0,1% do território do Oriente Médio; os restantes 99,9% do
território são controlados pelos árabes muçulmanos - ou seja, tal hostilidade
definitivamente não é motivada por uma disputa territorial.
Como muitos erroneamente
pensam, a questão central do conflito não é de origem geopolítica, mas sim
religiosa. A religião islâmica, como todos sabem, está fundamentada nos
preceitos contidos no Corão (ou Alcorão), livro considerado sagrado pelos
muçulmanos. O que talvez nem todos saibam é que o Alcorão está repleto de
mensagens e de ordens incitando o ódio, a perseguição e a violência contra os
ditos “infiéis”, que são todos aqueles que não professam o Islamismo. Os judeus
são especialmente odiados, sendo designados no Alcorão pelas palavras “porcos”
e “macacos”, animais que simbolizam a impureza e a imundície. Tal nível de
anti-semitismo é comparável ao que vigorava no regime nazista, o qual produziu
milhões de vítimas no holocausto judeu.
Devemos ter em mente que o
Islamismo não é uma religião como as outras; trata-se de um sistema doutrinário
completo, pois fornece diretrizes que regem todos os aspectos da vida dos
indivíduos, desde a alimentação e o vestuário até o sistema de leis. Leis estas
que, em vários casos, determinam a aplicação da pena de morte como punição para
aqueles que as transgredirem.
Vivendo em uma sociedade tão
severa e que prega o ódio a tudo o que é diferente, não é de se admirar que o
jovem Firouzja tenha se amedrontado e optado por não jogar com o MF Bronstein; isso
é plenamente compreensível, afinal é preferível para um jogador do Irã perder
uma partida a ter que sofrer represálias quando voltar para o seu país. Porém,
ao que tudo indica, o GM iraniano não ficou satisfeito por ter praticado o forfait2,
visto que, na rodada seguinte, ele perdeu para uma jogadora de nível bem
inferior, a alemã Antonia Ziegenfuss (ELO 1945), depois de deixar uma torre
pendurada. A opinião geral é a de que a derrota frente à enxadrista alemã foi
proposital; esse teria sido o modo de Firouzja protestar por ter sido obrigado
a entregar a partida contra o MF israelense, fato que prejudicou suas
pretensões de vencer o Grenke Chess Classic ou de pelo menos ficar o mais bem
classificado possível na competição.
MF Or Bronstein (Israel) e Antonia Ziengefuss (Alemanha) |
Posição da partida Firouzja vs. Ziegenfuss. Em sua vez de jogar, o iraniano fez o horrível movimento 36. Txe6??, que permitiu a captura da torre de d4. |
É certo que a FIDE, como
entidade responsável pela organização de torneios internacionais, está ciente
das tensões existentes entre as teocracias islâmicas e o Estado de Israel, bem
como dos boicotes protagonizados pelos enxadristas iranianos contra os israelenses.
É sabido, igualmente, que o emparceiramento dos torneios, em certas ocasiões, é
manipulado, justamente para evitar confrontos de jogadores israelenses com
jogadores de países que os boicotam. Sinceramente, acho isso lamentável. Ao
invés de manipular os emparceiramentos, a FIDE deveria, como órgão máximo do
xadrez mundial, fazer cumprir suas normas internas e desclassificar automaticamente
das competições os jogadores que insistissem em cometer o forfait. Essa seria uma forma de pressionar o Irã e outros países muçulmanos
a rever sua condenável postura de anti-semitismo no âmbito esportivo.
Quanto ao GM Alireza Firouzja,
quero crer que ele é apenas uma vítima do sistema tirânico e perverso ao qual
está submetido, e que não nutre ódio pelos judeus israelenses. Irei torcer para
que ele não tenha sua carreira prejudicada pela insanidade dos líderes do seu
país. Se isto acontecer, será muito triste para ele e para o xadrez, já que
Firouzja, apesar da juventude, já é o jogador mais forte em atividade no Irã e
também o número um do mundo na sua faixa etária! Alguns especialistas projetam
para ele uma trajetória brilhante, acreditando inclusive que ele tem chances de
se tornar Campeão Mundial de xadrez em um futuro não tão distante.
E, por falar em futuro,
sonho que chegará o dia em que teremos um mundo de paz e de fraternidade entre os
homens, sem fome, sem guerras e sem intolerância religiosa ou de qualquer
natureza. Um mundo em que possíveis desavenças sejam resolvidas unicamente na
base do diálogo, e não da violência. Um mundo em que o xadrez esteja acessível
a um número muito maior de pessoas, que se deixarão encantar pelas belezas e
mistérios desse jogo milenar. Enfim, um mundo em que os praticantes da Arte de
Caíssa realmente façam parte de uma irmandade global, em que cada enxadrista
possa dizer, com alegria e convicção: “Gens una sumus”!
Notas:
1
- Sexo: O autor do artigo utiliza a palavra “sexo” em lugar do termo “gênero”,
amplamente empregado na atualidade, por entender que o uso do referido termo
corrobora a falaciosa e anti-científica Teoria Queer ou Teoria de Gênero, segundo a qual a identidade sexual ou de
“gênero” dos indivíduos são resultado de uma construção social, e que,
portanto, não existem papéis sexuais biologicamente definidos na espécie
humana. Obviamente, essa ideia consiste em uma verdadeira afronta à Biologia e
já foi devidamente refutada por inúmeros estudiosos de diversas áreas da
ciência.
2 - Forfait: Vocábulo francês que
significa perda de uma partida por não-comparecimento.
Fontes de Pesquisa:
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Rubens. Xadrez de A a Z: dicionário
ilustrado. Porto Alegre: Artmed, 2005.
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Leontxo. Menores obligados a perder al
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HORTON,
J. Byrne et. al.Moderno dicionário de
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MANZANO,
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Grandes Mestres: 400 conselhos para melhorar seu nível enxadrístico.Porto
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MORGENSTEIN,
Flávio. Egípcio que não cumprimentou
israelense: nada a ver com o islamismo? Disponível em: http://sensoincomum.org/2016/08/12/egipcio-nao-cumprimentou-israelense/
MOURA,
Isabella Mayer. 4 questões para entender
o confronto entre Israel e Irã. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/4-questoes-para-entender-o-confronto-entre-ira-e-israel-a8ff0x66773foigu0poajz7m6/
PAI, Aditya. Grenke Open: Iranian star hands free point to Israeli. Disponível
em:
https://en.chessbase.com/post/iranian-gm-alireza-firouzja-forfeits-game-due-to-opponent-or-bronstein-s-israeli-nationality-at-grenke-chess-open
Site
da FIDE: https://www.fide.com/.
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