Hoje, dia 28 de junho, relembramos o aniversário de falecimento do ex-campeão mundial Mikhail Tal, o "Mago de Riga", que será o próximo homenageado da nossa série Galeria dos Campeões Mundiais de Xadrez. Por falar nisso, desde já avisamos que o presente texto irá antecipar algumas informações que serão reproduzidas na postagem acima referida. Tal é um dos meus maiores ídolos no xadrez, não só pelas características do seu jogo, mas também pelas suas qualidades humanas. Além de excepcionalmente talentoso como enxadrista, Tal era inteligente, tinha um refinado senso de humor e era dotado de uma memória prodigiosa. Ao contrário dos arrogantes Fischer e Kasparov, que muitas vezes tratavam com desprezo seus adversários, Tal era uma pessoa simples e carismática, que cativava a todos. Quanto mais leio sobre ele, mais cresce minha admiração por esse extraordinário jogador. Por essa razão, e visando torná-lo ainda mais conhecido pelos leitores, compartilho a seguir um artigo que escrevi no ano de 2012, por ocasião do 20º aniversário da morte de Mikhail Tal, o qual foi originalmente publicado no site do Clube de Xadrez On-Line¹.
Vinte anos sem Mikhail Tal
Por Luiz Fábio Alves Jales
Letônia... um pequeno país
da Europa setentrional, banhado pelas águas geladas do Mar Báltico. Sua
capital, Riga, que já havia dado ao mundo o talentoso e revolucionário
Nimzovitsch, foi o berço de um dos mais brilhantes enxadristas de todos os
tempos: Mikhail Nekhemevich Tal. Ele é reverenciado até hoje por ter sido um
exímio jogador tático, um perito na arte das combinações, sem dúvida sua marca
registrada.
Vista da cidade de Riga, capital da Letônia |
Tal nasceu em 09 de novembro
de 1936, no seio de uma família de origem judia; aliás, muitos dos melhores
jogadores de xadrez da história eram judeus ou descendentes de judeus: Steinitz,
Tarrasch, Rubinstein, o já citado Nimzovitsch, Lasker, Botvinnik, Bronstein,
Reshevsky, Fischer, Gelfand, Kasparov (o maior de todos) e vários outros mais.
Desde muito cedo, o pequeno Misha deslumbrava a todos com sua
inteligência e memória prodigiosas. Aos
três anos de idade ele já lia com perfeição, e aos cinco multiplicava de cabeça
números com três dígitos. Conta-se que, quando ele tinha sete anos, após assistir
uma palestra dada pelo pai na faculdade de medicina onde este lecionava, foi
capaz de reproduzi-la inteira, palavra por palavra, ao chegar em casa.
Com um cérebro assim
privilegiado, o adolescente Tal passou rapidamente pelo ensino médio e com
apenas 15 anos já estava frequentando os bancos escolares da Faculdade de
História e Filologia da Letônia, na qual ingressou para estudar língua e
literatura russa.
Tendo começado a jogar xadrez
na infância, com sete anos, Mikhail Tal fez rápidos progressos; aos 14 anos
estreou no campeonato da Letônia, aos 17 obteve o título de mestre e aos 20, ao
mesmo tempo em que venceu pela primeira vez o campeonato da URSS (iria
conquistá-lo mais cinco vezes), tornou-se grande mestre, um dos mais fortes daquele
país.
O jovem Mikhail Tal |
Comparado a Morphy pelo
brilhantismo do seu jogo e por sua ascensão fulgurante, a trajetória de Tal
rumo ao topo do xadrez teve o furor de um meteoro que ofuscou todos os
adversários em sua passagem. Em 1958, ele venceu o Interzonal de Portoroz, e no
ano seguinte venceu também o Torneio de Candidatos jogado na Iugoslávia,
obtendo assim o direito de disputar o título mundial contra o então campeão,
Mikhail Botvinnik.
De forma surpreendente, o match disputado em Moscou, em 1960,
terminou com a sensacional vitória do desafiante, por 12,5 x 8,5 (+6 -2 =13), o
qual sagrou-se, merecidamente, o oitavo campeão mundial de xadrez, com apenas
23 anos de idade, um recorde que só seria derrubado um quarto de século mais
tarde, quando Kasparov arrebatou de Karpov a coroa, com um ano a menos que Tal.
Na ocasião da disputa entre
Tal e Botvinnik, o patriarca da escola enxadrística soviética não pôde fazer
frente ao jogo impetuoso, ousado e “irracional” do seu oponente, e além da
dolorosa capitulação, o soberbo mestre do xadrez posicional assistiu os sólidos
princípios estratégicos sobre os quais ele assentara seu jogo ruírem perante a
força do “furacão” Tal.
De fato, o estilo de jogo do
grande mestre letão era único e inconfundível: quer manejasse as brancas, quer
as pretas, Tal jogava agressivamente, visando obter posições dinâmicas nas
quais sua magnífica visão combinatória pudesse desequilibrar a partida a seu
favor. À maneira do lendário Alekhine, Tal costumava lutar pela iniciativa
desde o começo, muitas vezes descuidando-se da defesa e incorrendo em sérios
riscos; dessa forma, ele era capaz de criar posições tão complicadas e cheias
de tensão, que boa parte de seus adversários, desnorteados e amedrontados com o
ímpeto dos ataques, não conseguiam defender-se corretamente e eram vencidos.
A sua habilidade em realizar
imprevisíveis sacrifícios era verdadeiramente fenomenal. Dotado de uma
extraordinária capacidade de cálculo e de uma imaginação criadora ímpar, a Tal
não importava o equilíbrio material ou posicional, e sim a possibilidade de
efetuar golpes táticos desconcertantes, cuja profundidade não era compreendida
pelo raciocínio lógico e cartesiano dos seus antagonistas. As belas combinações
e ataques por ele idealizados pareciam obras de magia, os quais lhe valeram o
epíteto de “O Mago de Riga” e provocaram o deleite dos seus inúmeros fãs
espalhados ao redor do mundo.
É sabido que parte das
combinações executadas pelo “mago” era produto não de um cálculo concreto, e
sim de pura intuição. Por isto mesmo, muitas dessas combinações não eram de
todo corretas, mas geralmente só se descobria isso nas análises post-mortem: durante o calor da partida
era difícil para os oponentes encontrarem uma refutação.
Uma vez de posse do título
mundial, Tal deu mostras de sua simplicidade e caráter amistoso. Ao contrário
do campeão anterior, o sisudo Botvinnik, que parecia querer proteger seu título
dentro de uma redoma de cristal, o novo campeão era visto jogando xadrez relâmpago com pessoas comuns, pelo
simples prazer de jogar.
Seu reinado foi o mais curto
da história dos campeonatos mundiais, durando precisamente um ano e cinco dias,
já que, em 1961, Botvinnik, num match-revanche,
recuperou o título de campeão, por um placar de 13 x 8 (+10 -5 =6). Muito se comentou
a respeito das precárias condições de saúde de Tal durante a disputa desse
segundo confronto. Informações dão conta de que poucos dias antes do início do match ele saíra do hospital, onde havia
sido submetido a uma cirurgia, e por isto mesmo, não teve como preparar-se adequadamente
para defender seu título.
Devo salientar que a saúde
de Tal sempre foi um empecilho para que este atingisse sua melhor forma
enxadrística. Por muitos anos ele foi atormentado por uma enfermidade renal,
agravada pelo abuso de álcool e, principalmente, de fumo. Ao longo de sua vida,
Tal passou por 12 cirurgias, tendo inclusive que retirar-se do Interzonal de
Curaçao, em 1962, a fim de ser levado às pressas para a mesa de cirurgia. Em
virtude do distúrbio nos rins e da sua negligência com a própria saúde, o auge
da carreira de Tal durou apenas três anos, de 1958 a 1961. Isto é algo
realmente lamentável, pois com a genialidade que lhe era inata, se ele dispusesse
de uma maior capacidade de trabalho e de uma saúde robusta, aonde poderia ter
chegado?
Não obstante tais
dificuldades, Mikhail Tal seguiu jogando até o final de sua vida, ganhando
diversos torneios e mantendo-se invicto em longas séries de partidas oficiais.
O modo de jogar agudo e agressivo da juventude, com o passar do tempo deu lugar
a um estilo mais equilibrado, posicional e técnico, correspondente à sua fase
madura, mas sem perder a ousadia, a criatividade e a habilidade tática.
Tal na idade madura |
Apesar de ser um jogador
implacável diante do tabuleiro, fora dele Mikhail Tal era uma pessoa simpática
e amável. Inteligente e possuidor de um refinado senso de humor, sempre rindo e
proferindo gracejos, Misha parecia ser
dotado de uma aura de magnetismo pessoal que cativava todos a seu redor. Era
querido por seus colegas enxadristas e demais pessoas que o conheciam, apegado
à família e aos amigos, e desapegado ao dinheiro e aos bens materiais. Sua grandeza
de espírito o fazia incapaz de sentir inveja ou de nutrir qualquer outro
sentimento mesquinho, mesmo num universo tão competitivo quanto o da elite do
xadrez!
Infelizmente, esse gênio do
tabuleiro nos deixou muito cedo: no dia 28 de junho de 1992 ele veio a falecer
num hospital de Moscou, aos 55 anos de idade. Tal, que é o meu ídolo no xadrez,
tanto pelas qualidades de seu jogo quanto pelas suas qualidades humanas, conseguiu,
com a beleza de seus sacrifícios, a intrepidez de seus ataques e a complicação
das posições que criava, abalar os pilares do jogo estritamente posicional e
exercer notável influência no desenvolvimento do pensamento enxadrístico na
segunda metade do século XX. Como seu fã, eu não poderia deixar de prestar-lhe
uma homenagem pela passagem do vigésimo aniversário de sua morte, rendendo o
justo tributo à sua memória.
No entanto, por mais que eu
teça elogios à sua pessoa, estes jamais serão tão autênticos quanto os
comentários sobre Tal feitos pelos companheiros que com ele conviveram; assim
sendo, para finalizar estas linhas, reproduzirei abaixo alguns testemunhos de
insignes enxadristas em relação ao inesquecível “Mago de Riga”:
Só
há um Mikhail Tal no mundo (GM Samuel Reshevsky);
Tal é um incrível fenômeno
no xadrez. Podem acreditar em mim, porque em meu tempo vi muitos talentos (GM
Max Euwe);
[Tal] era um autêntico
virtuoso: obtinha prazer confiando em sua fenomenal visão combinatória, e em
cada partida encontrava soluções paradoxais (GM Mikhail
Botvinnik);
[...]
seu estilo de jogo era inimitável, posto
que é impossível copiar a forma de jogar de um gênio. Tal é o único jogador que
eu me lembre que não calculava longas variantes, ele simplesmente as via!
Centenas de fantásticas combinações desfilavam continuamente em seu cérebro, e
sua imaginação não conhecia limites (GM Garry Kasparov).
REFERÊNCIAS
FILGUTH,
Rubens. Inteligências em confronto:
campeonatos mundiais de xadrez. Porto Alegre: Artmed, 2006.
__________.
Xadrez de A a Z: dicionário
ilustrado. Porto Alegre: Artmed, 2005.
KASPAROV,
Garry. Meus grandes predecessores, volume 2. Trad. de Giovanni Vescovi.
Santana de Parnaíba (SP): Solis, 2005.
MANZANO,
Antonio López; GONZÁLEZ, José Monedero. O
xadrez dos grandes mestres: 400 conselhos para melhorar seu nível
enxadrístico. Tradução de Abrão Aspis. Porto Alegre: Artmed, 2002.
¹ Clube de Xadrez On-Line: Site de xadrez criado por Gérson Peres Batista, enxadrista da cidade de São Sebastião do Paraíso-MG, no ano 2000. Durante vários anos, foi considerado o melhor site de xadrez do Brasil, abrangendo um conteúdo de boa qualidade e bastante diversificado, incluindo informações sobre torneios, biografia de grandes jogadores, artigos, crônicas, tópicos de teoria, etc. Lamentavelmente, o referido site foi retirado da internet por volta de 2015, sendo substituído por uma loja virtual de artigos de xadrez. O endereço da loja do Clube de Xadrez On-Line é: https://lojacxol.com.br/.
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