O
próximo enxadrista a ser focalizado em nossa série "Galeria dos
campeões mundiais de xadrez" é o russo Mikhail Botvinnik, o sexto
campeão do mundo e o primeiro da era FIDE. Vejamos um pouco a respeito
da sua trajetória.
MIKHAIL BOTVINNIK
Mikhail
Moiseyevich Botvinnik nasceu na cidade de Kuokkala, perto de São
Petersburgo (Rússia), em 17 de agosto de 1911. Aprendeu xadrez com um
amigo, quando tinha 12 anos, e pouco tempo depois já demonstrou seu talento
para o jogo, ao vencer um torneio escolar. Começou a se dedicar ao
estudo do jogo, e foi evoluindo cada vez mais. Em 1930, venceu o
Campeonato de Leningrado, e em 1931 conquistou pela primeira vez o
Campeonato Soviético (viria a tornar-se campeão da URSS em outras seis
ocasiões). Em 1934, empatou um match com o campeão tcheco Salo
Flohr, por 6x6, um claro indício do progresso que vinha fazendo Botvinnik
e outros fortes jogadores soviéticos, que a essa altura já eram capazes
de medir-se contra os melhores enxadristas do Ocidente. Seu primeiro
grande êxito viria em 1935, quando dividiu o primeiro lugar do torneio
de Moscou com Flohr, à frente de Lasker e de Capablanca. No ano seguinte,
experimentaria um êxito ainda maior, ao ganhar empatado com Capablanca o
torneio de Nottingham (1936), adiante de Euwe, Alekhine e Lasker. Dois anos
mais tarde, em 1938, ele participou do supertorneio de AVRO, destinado a
selecionar o aspirante a disputar o título mundial contra Alekhine.
Nesse torneio, que contava com a presença dos oito mais fortes
enxadristas do mundo na época, Botvinnik finalizou em 3º lugar, meio
ponto atrás dos campeões Fine e Keres, mas causou uma grande impressão
graças ao vigor do seu jogo. A partir de então, começaria a pensar na
conquista do título máximo do xadrez.
O jovem Botvinnik |
Após o torneio de AVRO, começaram as negociações de um match
pelo título mundial entre Alekhine e Botvinnik. O campeão do mundo
aceitou o desafio, porém a deflagração da II Guerra Mundial, ocorrida em
1939, impediu que o encontro acontecesse. Somente depois de encerrada a
guerra, foi possível retomar as negociações do match, em 1946.
Contudo, naquele mesmo ano, os planos de Botvinnik seriam interrompidos por mais um
acontecimento trágico: a repentina morte de Alekhine, em março de 1946, a
qual deixou o mundo do xadrez sem campeão. Diante desse cenário, a FIDE tomou as rédeas do poder e pôs-se a trabalhar na organização do novo campeonato mundial. No Congresso da FIDE de 1947, foi
aprovada a decisão de se promover um match-torneio entre os seis
melhores jogadores do mundo, a saber: o ex-campeão mundial Euwe, os
soviéticos Botvinnik, Keres e Smyslov, e os norte-americanos Reshevsky e
Fine. Foi programada uma competição a quatro voltas, a ser celebrada em
1948, a primeira parte na cidade de Haia (Holanda) e a segunda parte em
Moscou. No entanto, só participariam desse torneio cinco jogadores,
porque Fine acabou recusando o convite. Por causa da sua desistência,
decidiu-se que o torneio seria jogado a cinco voltas, em lugar das
quatro inicialmente previstas. Isso significava que cada jogador deveria
enfrentar os demais competidores cinco vezes.
Em primeiro plano, os cinco aspirantes ao título mundial em 1948 |
O match-torneio foi vencido
por Botvinnik com 14 pontos em 20 possíveis. Em seguida, veio Smyslov,
com 11 pontos. Keres e Reshevsky terminaram empatados em 3º lugar, com
10,5 pontos, e Euwe ficou na última colocação, com apenas 4 pontos.
Botvinnik foi então proclamado campeão do mundo, e se converteu em um
herói da sua nação, consolidando-se como o líder da chamada Escola
Soviética de xadrez, cuja abordagem científica do jogo exerceu uma
grande influência sobre o desenvolvimento do pensamento enxadrístico. O
reinado de Botvinnik inaugurou a hegemonia soviética no xadrez: pelos 24
anos seguintes, todos os campeões do mundo e seus desafiantes foram
jogadores oriundos de países da União Soviética, uma hegemonia que só
seria quebrada pelo genial Bobby Fischer, em 1972. Depois de conquistar o
título mundial, Botvinnik deixou de jogar torneios, e passou a dar
prioridade ao seu trabalho como engenheiro elétrico. Em 1951, ele
conservou o título frente ao aspirante ucraniano David Bronstein, com
quem empatou um match por 12 x 12 (+5 -5 =14). Na época, surgiram
suspeitas, nunca inteiramente dissipadas, de que Bronstein fora
obrigado pelas autoridades soviéticas a entregar o match para
Botvinnik. Muitos anos mais tarde, em sua autobiografia, Bronstein daria
uma declaração enigmática sobre o episódio: "A única coisa que estou
preparado para dizer sobre tudo isto é que fiquei sujeito a forte
pressão psicológica de várias fontes e que dependia totalmente de mim
ceder ou não à pressão. Vamos deixar assim". Na minha opinião, a ordem para que Bronstein entregasse o match de fato existiu, e certamente influenciou o
resultado do confronto. Apesar da sua grande força
enxadrística, Botvinnik tinha estreitas ligações com a cúpula do regime totalitário da União Soviética, e
comprovadamente utilizou o seu prestígio junto ao governo para prejudicar
adversários e manipular resultados de torneios a seu favor. Um dia,
ainda pretendo escrever um artigo a respeito desse lado sombrio do sexto
campeão mundial.
Botvinnik vs. Bronstein: um match polêmico |
No campeonato do mundo de 1954, Botvinnik de novo teve de se contentar com um empate em 12 x 12 (+7 -7 =10) frente a Smyslov, a quem cedeu o título mundial em 1957, com um resultado de 9,5 x 12,5 (+6 -3 =13). Esta derrota o estimularia, e Botvinnik encarou o encontro de revanche de 1958 com espírito de conquista. Seus dois pontos fortes, a força de vontade e o intenso trabalho analítico, lhe permitiram encontrar os pontos débeis do seu rival e reconquistar seu título. Essa situação se repetiu em 1960, contra a fulgurante estrela do xadrez Mikhail Tal. Botvinnik, que em três anos havia disputado um único torneio, perderia a coroa para Tal e a recuperaria no ano seguinte, aproveitando as debilidades do seu oponente e o seu precário estado de saúde. Manteve o título até 1963, quando foi destronado mais uma vez, desta feita por Tigran Petrosian. Foi então que a FIDE suspendeu o direito de revanche nas disputas pelo campeonato mundial, e Botvinnik, que não desejava mais competir pela coroa jogando um novo ciclo, abandonou suas pretensões de reaver o título mundial. Encerrou sua participação em torneios em 1970, e depois disso passou a se dedicar ao trabalho de professor de xadrez. Também tentou, sem êxito, criar um programa de xadrez para computador.
Botvinnik em 1962 |
Botvinnik, considerado "o Patriarca do xadrez soviético", foi elevado à categoria de lenda viva no seu país. Compartilhou sua paixão pelo xadrez com uma bem-sucedida carreira de cientista. Encarnou o jogo científico, racional, e foi um profundo analista de todas as fases do jogo, atribuindo uma grande importância ao trabalho de análise. Suas descobertas deram impulso à evolução da teoria do xadrez, principalmente no campo das aberturas. Seu jogo era marcado pela vontade de penetrar na "essência" das posições, e ele sempre encarou o xadrez com muita seriedade. Por exemplo, repudiava as partidas rápidas e blitz, e não queria saber de problemas de xadrez que não tivessem relação com uma partida concreta. Seu estilo era predominantemente posicional, mas, assim como todos os campeões mundiais, também dominava o jogo tático. Possuía uma personalidade forte e um caráter difícil, mantendo relações conflituosas com seus pares. Como professor, Botvinnik dirigiu uma escola voltada para o treinamento de jovens talentos soviéticos, de onde emergiram muitos Grandes Mestres, dentre eles os 3 Ks: Karpov, Kasparov e Kramnik. Faleceu em Moscou, no dia 05 de maio de 1995.
E agora, como temos feito em todas as publicações da série sobre os campeões mundiais, vamos apresentar ao público leitor uma partida que talvez seja a mais brilhante já jogada por Botvinnik, e uma das mais brilhantes de todos os tempos, graças à magnífica combinação iniciada com o sensacional lance 30. Ba3!! Essa partida foi disputada contra o ex-campeão mundial Capablanca, no torneio de AVRO (1938), e se tornou bastante famosa, por figurar em vários manuais de xadrez. Deleitem-se com essa obra-prima do ataque!
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