segunda-feira, 24 de agosto de 2020

A ESCOLA DE XADREZ DE MIKHAIL BOTVINNIK

 

Neste texto, publicado no site do GM Rafael Leitão, o enxadrista n.º 1 do ranking brasileiro defende a premissa de que ter sido treinado por Botvinnik fez toda a diferença para que Kasparov chegasse aonde ele chegou. Antes de partirem para a leitura do texto, confiram o comentário que o GM Leitão publicou no seu perfil do Facebook: "Que diferença faz treinar um enxadrista talentoso desde o começo, com o método certo, mostrando como é difícil chegar no topo. Imagina a diferença que fez para Kasparov treinar constantemente com Botvinnik desde cedo. Eu afirmo: não haveria Kasparov (não como nós o conhecemos hoje) sem Botvinnik. Alguém aí concorda?" Quem sou eu para discordar, amigo Leitão!! Vamos ao texto!


A ESCOLA DE XADREZ DE MIKHAIL BOTVINNIK*

 

Mikhail Botvinnik dominou o xadrez mundial entre 1948 e 1963, com algumas pequenas interrupções durante os curtos reinados de Smyslov e Tal. A forma profissional com que encarava o jogo foi o grande trunfo deste brilhante enxadrista. Como se não bastasse manter-se no topo por mais de uma década, Botvinnik seguiu contribuindo mesmo após perder definitivamente o título. Por meio da sua escola da xadrez, transferiu os seus conhecimentos para os prodígios soviéticos, tornando-se o Patriarca do xadrez para a nação que dominou os tabuleiros na segunda metade do século XX.

 

Botvinnik treinando o garoto Kasparov
 

A Primeira Fase da Escola

No mesmo ano em que foi derrotado para Tigran Petrosian (1963), Botvinnik criou sua escola. Porém, o projeto não durou muito nessa primeira fase: apenas 18 meses. De todo modo, entre os alunos desse período estavam Karpov, Balashov, Razuzaev, Timoshchenko e Rashkovsky.

A Retomada e a Metodologia de Ensino

A escola retornou às atividades em 1969 e, em meados dos anos setenta, os alunos começaram a ter destaque. A escola funcionava da seguinte maneira: três vezes ao ano, vinte jogadores de ambos os sexos, das mais diversas cidades da União Soviética, se reuniam durante sessões de treinamento por 10 dias.

As aulas de Botvinnik seguiam a seguinte metodologia: o campeão analisava em grupo a partida de um dos alunos. Os alunos também jogavam partidas amistosas que eram analisadas por todos. E, após as análises, se estabelecia um diagnóstico final, prescrevendo-se uma espécie de tratamento para os erros dos alunos.

Botvinnik também falava sobre o seu trabalho extra-aulas, sobre seu êxito nos estudos, da importância de praticar esportes, contava histórias dos torneios e do seu trabalho pessoal no xadrez, com valiosos segredos profissionais da preparação para competições. E, por fim, mostrava quatro partidas próprias.

Sem dúvida o campeão se entregava de corpo e alma à preparação dos jovens talentos. Não impunha um estilo aos seus alunos e fazia todo o possível para que os jovens descobrissem o próprio caminho.

Com Kasparov, por exemplo, ao perceber a tendência do jovem Garry para um xadrez dinâmico e de ataque, recomendou nas lições de casa uma análise minuciosa das partidas de Alekhine.

Botvinnik dava várias aulas e analisava muito, mas também é preciso mencionar os méritos do seu grande assistente: o lendário treinador Mark Dvoretsky.

O Aluno Preferido

No verão de 1973, o mestre e treinador Alexander Nikitin conseguiu dois convites na Escola de Botvinnik para dois dos seus melhores alunos: Borya Taborov (12 anos) e Garry Kasparov (10 anos).

Ambos foram convocados para uma entrevista seletiva com o próprio Botvinnik. O campeão mundial interrogou os jovens enxadristas durante um par de horas com perguntas do tipo: “Analisa suas próprias partidas?”, “Pratica algum esporte?”.

Os garotos também mostraram suas melhores partidas e falaram um pouco da própria vida. Por alguma razão, Botvinnik escolheu apenas um dos meninos. Borya Taborov já era um candidato a mestre e suas partidas eram mais consistentes que as de Kasparov.

No entanto, Garry que foi admitido na escola. Sem dúvida um acontecimento simples que marcou a história do xadrez. Taborov se converteu no mestre mais jovem do país e jogou durante mais uns anos, porém acabou deixando o xadrez para estudar ciências em um instituto respeitável.

A partir de então, Garry Kasparov tornou-se o aluno preferido da escola. Em geral, o campeão mundial se reunia com os demais apenas nas sessões de treinamento, enquanto com Garry manteve encontros regulares durante 14 anos entre 1973 e 1987.

 

O jovem Kasparov ao lado do seu mestre Botvinnik
 

A Última Fase da Escola de Botvinnik

A Escola de Botvinnik fechou mais uma vez no final de década de 1970. Após alguns anos de intervalo, ela foi reaberta em 1986, agora com um novo mentor: Garry Kasparov.

Nesse momento, Botvinnik tinha 75 anos e apoiou jovens prodígios como Kramnik e Shirov. O campeão adorava recordar seus jogos. Quando perguntava para um dos jovens sobre uma de suas partidas, caso o prodígio não a conhecesse, Botvinnik interrompia a explicação anterior e mostrava a tal partida.

Apesar de estar nos anos 1980, o início da era dos computadores, a sua influência ainda era colossal. Nestas sessões, o já campeão mundial Kasparov também deu aulas e jogou simultâneas contra os alunos.

Contudo, a parceria Botvinnik-Kasparov foi deteriorando com o passar dos anos. Enquanto Botvinnik era um fervoroso defensor do comunismo e da FIDE, Kasparov já mostrava as suas inclinações contra a federação internacional e também contra o regime.  Contudo, a escola durou até o início dos anos 1990. Botvinnik faleceu em maio de 1995, aos 83 anos e 9 meses.

Sobre a escola de Botvinnik, Garry afirma que “um contato desse tipo com uma lenda viva do xadrez deixa qualquer um marcado, ampliando gradualmente e aprofundando sua própria visão do xadrez. Sinto por aqueles alunos que não entenderam isso”.

 

 * Texto de autoria do MF William Ferreira da Cruz.

 

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