Dando sequência a nossa série de postagens sobre os campeões mundiais de xadrez, hoje iremos falar sobre o 11º campeão do mundo, aquele que é considerado por muitos especialistas como o mais genial enxadrista de todos os tempos: a lenda, o mito, o fenômeno Robert (Bobby) James Fischer!
ROBERT JAMES FISCHER
Robert James Fischer, mais conhecido como "Bobby" Fischer, nasceu na cidade de Chicago (EUA), no dia 09 de março de 1943. Possuía ascendência alemã por parte do pai e suíça por parte da mãe. Aprendeu xadrez aos seis anos, com sua irmã Joan. A partir do momento em que conheceu o jogo, foi completamente absorvido por ele, a ponto de ficar obcecado pelo xadrez. Como todo prodígio, o garoto fez rápidos progressos. Aos 13 anos, em 1956, derrotou o MI Donald Byrne em uma partida brilhante, na qual deu mostras do seu extraordinário talento, e que ficou conhecida como "O jogo do século" (veja essa partida aqui). Em 1957, aos 14 anos, o adolescente residente no bairro do Brooklyn, em Nova Iorque, surpreendeu a todos vencendo o Campeonato Absoluto dos Estados Unidos, à frente do famoso GM Samuel Reshevsky, um dos melhores jogadores do mundo. Esse torneio fazia parte do ciclo do Campeonato Mundial, de modo que, ao vencê-lo, Bobby se classificou para jogar o Interzonal de Portoroz (Ioguslávia), o mais jovem jogador da história a conseguir essa façanha. Nesse Interzonal, Fischer finalizou em 6º lugar, conquistando o título de Grande Mestre, e, ao mesmo tempo, uma vaga para o Torneio de Candidatos. Na época (1958), Bobby tornou-se o mais jovem enxadrista da história a obter o título de GM, aos 15 anos de idade.
Em 1967, Fischer envolveu-se em mais uma polêmica: ao jogar o Interzonal de Sousse, na Tunísia, ele liderava a competição com ampla vantagem, porém entrou em conflito com os organizadores, por não concordar com as condições de disputa das partidas adiadas, e abandonou o torneio. Com a desistência de Fischer, o GM Bent Larsen ganhou o Interzonal, enquanto Fischer deu início a um período de cerca dois anos e meio de quase total inatividade. Depois desse período de ausência, seu retorno à arena internacional foi avassaladora: em março de 1970, ele integrou a equipe "Do Resto do Mundo", que enfrentou a equipe da União Soviética no primeiro "Match do Século". Jogando no tabuleiro n.º 2, Fischer derrotou o ex-campeão mundial Petrosian pelo placar de 3 x 1 (+2 =2). Depois, no final do mesmo ano, ele demonstrou grande superioridade sobre seus adversários no Interzonal de Palma de Mallorca, torneio que venceu com 3,5 pontos adiante do segundo colocado, Bent Larsen. A etapa seguinte rumo à conquista do título mundial foi a participação no Torneio de Candidatos de 1971. Seu primeiro encontro nessa competição teve lugar em Vancouver (Canadá), contra o GM soviético Mark Taimanov. Eles jogaram um match programado para 10 partidas, e o russo até conseguiu construir boas posições, porém não pôde resistir muito tempo aos recursos de seu adversário, e sucumbiu por 6 x 0, com o que o match foi finalizado antecipadamente. Seu oponente seguinte foi o dinamarquês Bent Larsen, que havia sido o único jogador a vencer Fischer em um Interzonal (em Sousse, 1967), e que por isso estava otimista. No entanto, apesar de fazer partidas equilibradas, ele também perdeu pela incrível contagem de 6 x 0, assim como Taimanov, resultado que causou assombro à comunidade enxadrística internacional. Até o circunspecto Botvinnik declarou que, se as coisas continuassem assim, teria que reconhecer que Fischer era uma espécie de gênio do xadrez (como se ele não fosse exatamente isso!). Na final do Torneio de Candidatos, foi a vez de Fischer massacrar o ex-campeão do mundo, Petrosian, pelo placar de 6,5 x 2,5 (+5 -1 =3), e com isso qualificou-se para jogar contra Spassky pela coroa. Finalmente havia chegado a oportunidade que Fischer havia esperado por quase toda a sua vida: havia chegado o momento de ele disputar o título de campeão mundial de xadrez!
O encontro pelo título máximo teve lugar na capital da Islândia, Reykjavik, e foi certamente o mais conturbado da história. Desde o início das negociações para a realização do match, Fischer criou muitas dificuldades aos organizadores, graças à sua postura intransigente e suas exigências excessivas, algumas nada razoáveis. Primeiro recusou-se a jogar na Islândia, alegando que desejava jogar em Belgrado (Iugoslávia) ou no continente americano. Depois, fez reclamações relativas ao fundo de prêmios, exigindo que a premiação de R$ 125.000 dólares (sem precedentes até então!) fosse aumentada. Felizmente, o então Presidente da FIDE, Max Euwe, demonstrou firmeza e exerceu sua autoridade, escolhendo a Islândia para sediar o encontro e determinando que o Campeonato Mundial deveria começar no dia 02 de julho de 1972. Além disso, ele ameaçou desclassificar Fischer caso ele não comparecesse para jogar o match. Em plena Guerra Fria, o mundo do xadrez e o público em geral acompanhavam com grande ansiedade os preparativos para o duelo histórico entre o russo Spassky e o norte-americano Fischer, mas ninguém sabia se Bobby iria jogar. Em 02 de julho, a data marcada para o início, os envolvidos estavam prontos e aguardavam a chegada de Fischer, que não apareceu. Na cerimônia de abertura, estavam presentes o Presidente da Islândia, o Presidente da FIDE, ministros, embaixadores, o árbitro Lothar Schmid, jornalistas, Spassky e seus ajudantes, enfim, todos - menos Fischer. Para não ter que desclassificá-lo, Euwe habilmente negociou com a delegação soviética um adiamento, dando um ultimato a Fischer e exigindo que ele se apresentasse para jogar até o meio-dia de 04 de julho. Ele conseguiu cumprir o prazo por pouco, e quando desembarcou no aeroporto de Reykjavik, uma multidão de fãs e autoridades islandesas esperava para recebê-lo, mas Bobby ignorou a multidão e rapidamente entrou no carro oficial, que o conduziu até o hotel. Somente uma semana depois da sua chegada, no dia 11 de julho de 1972, finalmente os oponentes se sentaram diante do tabuleiro para o início da épica batalha que estava por vir!
Spassky vs. Fischer - Match de 1972 |
Quando o match
teve início, o primeiro jogo terminou com vitória de Spassky, após um
erro incompreensível de Fischer: num final de bispos e peões
completamente igualado, ele tomou o peão de h2 com seu bispo, permitindo
na sequência que o bispo fosse cercado e capturado. Para piorar sua
situação, ele fez exigências descabidas aos organizadores, e, como não
foi atendido, não compareceu para jogar a segunda partida, perdendo por
W.O. O futuro do campeonato estava ameaçado, e todos temiam, inclusive o
próprio Spassky, que Fischer abandonasse a competição. Foi muito
complicado convencê-lo a voltar ao tabuleiro, mas o match
prosseguiu, e nas oito partidas seguintes, Fischer venceu cinco e
empatou três, ultrapassando o campeão mundial no placar. Depois disso
vieram mais 11 partidas, nas quais Spassky realizou intensos esforços na
tentativa de conter o bom momento de Fischer, todavia não teve
sucesso... o desafiante assumiu magistralmente o controle das ações, e
depois de perder a 11ª partida, ganhou a 13ª e a 21ª, vencendo o
confronto por 12,5 x 8,5 (+7 -3 =11) e proclamando-se o novo campeão
mundial. Como já dissemos em outras ocasiões, esse encontro entre os
dois grandes campeões se revestiu de enorme importância histórica, uma
vez que simbolizava o embate entre a União Soviética comunista,
possuidora do título mundial desde o período pós-guerra, e os Estados
Unidos capitalista: com a conquista do título, Bobby se transformaria em
um herói no Ocidente! Depois desse feito extraordinário, alguns
opinavam que Fischer seguiria sendo invencível até o ano 2000, mas, do
mesmo modo que seu compatriota Morphy no século XIX, ele abandonaria a
cena no auge da glória: após subir ao trono do xadrez, ele não jogou
mais nenhum torneio, passando a viver recluso e a apresentar sintomas de
distúrbios mentais. Como se isso não bastasse, ele se recusou a
defender seu título frente ao desafiante Anatoly Karpov, que foi coroado
campeão mundial em 1975, sem precisar enfrentar o seu antecessor, um
caso único na história do xadrez. A abdicação de Fischer causou uma
profunda decepção aos seus admiradores espalhados ao redor do mundo.
Somente em 1992, para surpresa de todos, ele quebraria o isolamento
voluntário para disputar um segundo match contra seu velho rival
Spassky. Essa experiência recorda os decepcionantes "remakes" do cinema:
mais uma vez Fischer se impôs a Spassky, que já não pertencia à elite
mundial, contudo ficou evidente que ele já não tinha nível suficiente
para lutar contra os melhores Grandes Mestres. Depois dessa tentativa de
retorno aos tabuleiros, ele novamente desapareceu, mergulhando nas
sombras da obscuridade.
Spassky vs. Fischer - Match de 1992 |
Fischer foi sem dúvida um dos maiores gênios da história do xadrez. Como jogador, foi excepcionalmente talentoso e merecedor de toda a nossa admiração, mas, como ser humano, era uma pessoa difícil e problemática. Costumava ser intransigente e protestar contra qualquer fator que ele julgasse incômodo ou insatisfatório nos torneios: ruído excessivo, iluminação deficiente, premiações modestas, dentre outros. A humildade definitivamente não era uma de suas virtudes, e muitas vezes ele recebeu críticas por causa de atitudes arrogantes e até mesmo desrespeitosas para com seus colegas de profissão, árbitros e organizadores, além de ter mantido relações conflituosas com alguns periodistas. Sua personalidade difícil alimentou muitas rixas e intrigas, contribuindo para reforçar sua impopularidade. Outro fato digno de nota é que Fischer sempre teve uma postura ambígua com relação a suas origens judias (ele era judeu por parte de mãe), chegando a protagonizar manifestações de antissemitismo. Quanto ao seu estilo de jogo, o gênio norte-americano combinava o talento natural de Capablanca com a capacidade de trabalho de Alekhine. Seu estilo era direto e objetivo, um "xadrez clássico simples", na definição de seu colega Robert Byrne. Valorizava a força do par de bispos, e sua grande perícia técnica lhe permitia conseguir pequenas vantagens a partir de posições simples. Dominava seus rivais em todos os terrenos, inclusive no campo psicológico, e jogava quase sempre para ganhar, desprezando os empates rápidos. Sua única debilidade, segundo Spassky, residia em uma relativa dificuldade para captar o momento crucial da partida. Seu repertório de aberturas era mais reduzido do que o dos demais Grandes Mestres da elite, mas ele o conhecia perfeitamente bem. De brancas, costumava jogar 1. e4 quase que invariavelmente ("comprovadamente o melhor", como ele mesmo declarara), embora também tenha aberto o jogo com 1. Cf3, c4 ou b3 em algumas ocasiões. Com as negras, usava exclusivamente a Variante Najdorf da Siciliana contra a abertura do peão do rei, que ele manejava com maestria, e contra o lance 1. d4 suas réplicas preferidas eram a Defesa Índia do Rei e a Defesa Grünfeld. Apesar de ser um jogador moderno, Fischer se inspirava nos pioneiros do xadrez e nos mestres do século XIX, utilizando nas aberturas ideias de Steinitz, Charousek, Staunton e outras celebridades enxadrísticas do passado. Nos seus últimos anos de vida, impossibilitado de voltar aos Estados Unidos em razão de problemas com a justiça daquele país, passou a viver na Islândia, onde obteve a cidadania. Bobby Fischer faleceu em 17 de janeiro de 2008, aos 64 anos, por coincidência o mesmo número de casas do tabuleiro de xadrez.
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