Em nossa última publicação, desfizemos o mito que circula em livros e na internet, sobre a menção ao xadrez em uma suposta carta do filósofo Aristóteles ao seu pupilo Alexandre Magno. Na oportunidade, esclarecemos que os dois aludidos personagens históricos viveram em uma época bem anterior à invenção do xadrez, sendo, portanto, impossível que eles tivessem tido contato com o nobre jogo.
Pelo fato de ter falado a respeito da história do xadrez na publicação anterior e ter demonstrado o anacronismo existente no episódio da carta de Aristóteles, na postagem de hoje tentarei aprofundar o assunto, e para isso irei compartilhar com os leitores um artigo de minha autoria, intitulado "A importância do estudo da história do xadrez", publicado originalmente em maio de 2015 no antigo site do Clube de Xadrez On-line, que infelizmente teve seu conteúdo retirado da internet. Desejo a todos uma boa leitura!
Importância
do estudo da história do xadrez
Por Luiz Fábio Alves Jales
Há tempos venho alimentando a ideia de
criar um blog ou uma página no
Facebook para falar exclusivamente de xadrez. Mas não de qualquer aspecto do
xadrez. Eu pretendo falar, mais especificamente, da maravilhosa história desse
jogo plurissecular, isso porque sempre tive verdadeiro fascínio pela história
em geral.
Esse fascínio constituiu a primeira
motivação para a minha ideia de abordar, por meio de um espaço na internet, a
história do xadrez. O segundo motivo que me levou a conceber tal projeto surgiu
de uma constatação: após anos e anos de leituras e pesquisas, percebi que a
maior parte dos blogs e sites brasileiros especializados em
xadrez não dá à história do jogo a merecida atenção.
De fato, alguns desses canais
privilegiam, em suas postagens, a cobertura de torneios nacionais e
internacionais, divulgando fotos e informações relativas aos eventos. Em outros,
predomina a abordagem teórica do jogo; esses apresentam conceitos teóricos e
procuram ilustrá-los através de partidas comentadas, trazendo ao leitor,
eventualmente, problemas e estudos artísticos. Há, por fim, os de natureza mais
abrangente, que tratam da teoria, da cobertura de torneios, dos estudos e
problemas, da venda de produtos etc., e ainda reservam algum espaço para a exposição
de fatos e curiosidades enxadrísticas.
Temos de celebrar a existência desses sites e blogs de xadrez, que cumprem satisfatoriamente sua função de
difundir o nosso esporte junto à população. Não obstante essas louváveis
iniciativas de divulgar o xadrez em um país onde ele não tem tradição, sinto
que nos falta um espaço voltado para o aprofundamento das noções de cunho
histórico, destinado aos enxadristas interessados em obter tal conhecimento.
Daí a minha ideia de criar esse espaço ainda inexistente, na tentativa de
suprir a lacuna deixada pelos demais canais de divulgação da Arte de Caíssa.
Devo dizer que, desde que comecei a ler
sobre xadrez, nos idos de 1996, passei a querer conhecer a fundo as origens do
jogo, sua evolução, a biografia dos grandes jogadores, enfim, conhecer seu
legado histórico. Até hoje a história do xadrez me atrai mais do que a teoria,
e nesse ponto creio que sou diferente da maioria dos enxadristas. Sim, porque o
desejo da maioria dos enxadristas é o de melhorar seu nível de jogo, e por isso
eles se dedicam quase que somente ao estudo da teoria. Para se tornarem
jogadores mais fortes, leem sobre aberturas, tática, estratégia, finais,
analisam partidas de mestres, jogam contra programas de computador, dentre
outras atividades. Dessa forma, eles se aprimoram no conhecimento da teoria do
jogo, mas se esquecem que é importante adquirir também conhecimentos históricos,
descuido que vem a ser ruim para eles e para o xadrez.
Como assim? É simples: quando um jogador
ganha destaque como competidor ou como organizador de torneios de xadrez, ele acaba
se tornando uma referência do esporte, em determinada localidade. A partir daí,
poderá ser convidado a dar palestras sobre o xadrez ou a conceder entrevistas
em programas de rádio e televisão, e, nessas ocasiões, certamente terá que
responder perguntas relacionadas não só à teoria, mas também à história do
xadrez. Nesse caso, se ele não possuir uma boa base de conhecimentos
históricos, esse enxadrista de destaque vivenciará uma das seguintes situações
constrangedoras: ou não saberá responder a pergunta, ou, o que é pior, a
responderá de maneira equivocada, transmitindo ao público informações
incorretas sobre o xadrez e, em ambos os casos, terá desempenhado mal o seu
papel de divulgador do nosso querido esporte.
Além disso, o estudo da história do xadrez,
quando realizado de modo consistente, confere ao jogador pesquisador certa
erudição, distinguindo-o do jogador comum. É claro que, para muitos, a
aquisição dessa erudição voltada para a história do xadrez parecerá inútil, sem
relevância. Tal pensamento é compreensível e natural, afinal de contas estamos
em um país ainda atrasado intelectualmente, em que uma parcela da população,
não se contentando em viver na ignorância, chega a idolatrá-la. Porém, acredito
que toda forma de conhecimento é válida, pois, tanto na vida acadêmica quanto
na vida profissional, e mesmo na vida cotidiana, frequentemente nos deparamos com
situações em que ter estudado faz a
diferença. Nesse sentido, estou inteiramente de acordo com a afirmação do
filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626): “Conhecimento é poder”. Com efeito, o
conhecimento, ao aumentar o potencial e as habilidades das pessoas, permite que
elas façam coisas que não poderiam ser feitas sem ele (escrever este artigo, por
exemplo, é uma delas).
O estudo aprofundado da história do
“Jogo dos Reis” – outro nome pelo qual o xadrez é conhecido – pode nos livrar
de algumas armadilhas, nas quais, por outro lado, caem facilmente aqueles que
têm apenas um conhecimento superficial da matéria. Um exemplo simples costuma
ocorrer quando se pergunta a um enxadrista onde surgiu o xadrez. Sem hesitar um
segundo, como se estivesse diante de uma pergunta muito fácil, o enxadrista
hipotético provavelmente responderá que o xadrez surgiu na Índia. Correto? Não,
errado!! A história nos mostra que o que
surgiu na Índia foi o ancestral do xadrez, o chaturanga, palavra proveniente do idioma sânscrito e que significa
“exército formado de quatro membros”, uma alusão as quatro divisões que
formavam o exército indiano na antiguidade (elefantes, cavalos, carros e
soldados a pé).
Fica claro então que o jogo que hoje
conhecemos como xadrez não surgiu na Índia, pois ainda se passariam muitos
séculos até que ele atingisse o estágio em que se encontra atualmente. Vejamos
então um breve resumo desse percurso histórico: tendo se originado na Índia, o
ancestral do xadrez (chaturanga) foi
levado para a Pérsia, região onde hoje se localiza o Irã, sofrendo modificações
em suas regras e transformando-se no chatrang,
já mais parecido com o xadrez atual. Algumas centenas de anos mais tarde,
quando os muçulmanos iniciaram sua expansão pelos continentes vizinhos, eles
penetraram na Europa meridional através do norte da África, levando consigo o shatranj, palavra árabe usada para
designar o jogo. Uma vez na Europa, o shatranj
espalhou-se rapidamente, passando por novas mudanças, não só nos movimentos das
peças, mas também no nome das mesmas. É assim que, por volta do ano de 1475,
provavelmente na Espanha, nasce o xadrez moderno, produto de uma evolução em suas
regras realizada com a contribuição de diversos povos, como nos explica David
Shenk, em seu livro O jogo imortal:
Na realidade, o
jogo não foi inventado de uma vez só, durante um acesso de inspiração de um
único rei, general, filósofo ou mago da corte. Em vez disso, é quase certo ter
sido (assim como a Bíblia e a internet) o resultado de anos de ajustes, por um
grupo amplo e descentralizado; um trabalho lento realizado por uma inteligência
coletiva” (Op. cit., 2007, p. 29).
Seja como for, o fato é que o xadrez é,
na minha opinião, uma das maiores invenções da Humanidade, e sua história é tão
rica, bela e fascinante como o jogo em si. Por essa razão, o enxadrista não se
deve privar de conhecê-la; deve, ao invés de se limitar ao estudo da teoria,
complementá-lo com o estudo da história, convertendo-se, dessa forma, em um
jogador completo. Quanto à página que pretendo criar, tão logo esteja pronta
irei divulgá-la entre os colegas enxadristas, e se eu conseguir que alguns
deles passem a demonstrar mais interesse pelo aspecto histórico do xadrez, meu
trabalho terá valido a pena.
REFERÊNCIAS
LASKER,
Edward. História do xadrez. Tradução
de Aydano Arruda. 2 ed. São Paulo: IBRASA, 1999.
SHENK,
David. O jogo imortal: o que o
xadrez nos revela sobre a guerra, a arte, a ciência e o cérebro humano.
Tradução de Roberto Franco Valente. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
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