terça-feira, 26 de novembro de 2019

ARTIGO DE XADREZ #2


Em nossa última publicação, desfizemos o mito que circula em livros e na internet, sobre a menção ao xadrez em uma suposta carta do filósofo Aristóteles ao seu pupilo Alexandre Magno. Na oportunidade, esclarecemos que os dois aludidos personagens históricos viveram em uma época bem anterior à invenção do xadrez, sendo, portanto, impossível que eles tivessem tido contato com o nobre jogo.




Pelo fato de ter falado a respeito da história do xadrez na publicação anterior e ter demonstrado o anacronismo existente no episódio da carta de Aristóteles, na postagem de hoje tentarei aprofundar o assunto, e para isso irei compartilhar com os leitores um artigo de minha autoria, intitulado "A importância do estudo da história do xadrez", publicado originalmente em maio de 2015 no antigo site do Clube de Xadrez On-line, que infelizmente teve seu conteúdo retirado da internet. Desejo a todos uma boa leitura!


Importância do estudo da história do xadrez


                                                                       Por Luiz Fábio Alves Jales
  

Há tempos venho alimentando a ideia de criar um blog ou uma página no Facebook para falar exclusivamente de xadrez. Mas não de qualquer aspecto do xadrez. Eu pretendo falar, mais especificamente, da maravilhosa história desse jogo plurissecular, isso porque sempre tive verdadeiro fascínio pela história em geral.

Esse fascínio constituiu a primeira motivação para a minha ideia de abordar, por meio de um espaço na internet, a história do xadrez. O segundo motivo que me levou a conceber tal projeto surgiu de uma constatação: após anos e anos de leituras e pesquisas, percebi que a maior parte dos blogs e sites brasileiros especializados em xadrez não dá à história do jogo a merecida atenção.

De fato, alguns desses canais privilegiam, em suas postagens, a cobertura de torneios nacionais e internacionais, divulgando fotos e informações relativas aos eventos. Em outros, predomina a abordagem teórica do jogo; esses apresentam conceitos teóricos e procuram ilustrá-los através de partidas comentadas, trazendo ao leitor, eventualmente, problemas e estudos artísticos. Há, por fim, os de natureza mais abrangente, que tratam da teoria, da cobertura de torneios, dos estudos e problemas, da venda de produtos etc., e ainda reservam algum espaço para a exposição de fatos e curiosidades enxadrísticas.
Temos de celebrar a existência desses sites e blogs de xadrez, que cumprem satisfatoriamente sua função de difundir o nosso esporte junto à população. Não obstante essas louváveis iniciativas de divulgar o xadrez em um país onde ele não tem tradição, sinto que nos falta um espaço voltado para o aprofundamento das noções de cunho histórico, destinado aos enxadristas interessados em obter tal conhecimento. Daí a minha ideia de criar esse espaço ainda inexistente, na tentativa de suprir a lacuna deixada pelos demais canais de divulgação da Arte de Caíssa.
Devo dizer que, desde que comecei a ler sobre xadrez, nos idos de 1996, passei a querer conhecer a fundo as origens do jogo, sua evolução, a biografia dos grandes jogadores, enfim, conhecer seu legado histórico. Até hoje a história do xadrez me atrai mais do que a teoria, e nesse ponto creio que sou diferente da maioria dos enxadristas. Sim, porque o desejo da maioria dos enxadristas é o de melhorar seu nível de jogo, e por isso eles se dedicam quase que somente ao estudo da teoria. Para se tornarem jogadores mais fortes, leem sobre aberturas, tática, estratégia, finais, analisam partidas de mestres, jogam contra programas de computador, dentre outras atividades. Dessa forma, eles se aprimoram no conhecimento da teoria do jogo, mas se esquecem que é importante adquirir também conhecimentos históricos, descuido que vem a ser ruim para eles e para o xadrez.
Como assim? É simples: quando um jogador ganha destaque como competidor ou como organizador de torneios de xadrez, ele acaba se tornando uma referência do esporte, em determinada localidade. A partir daí, poderá ser convidado a dar palestras sobre o xadrez ou a conceder entrevistas em programas de rádio e televisão, e, nessas ocasiões, certamente terá que responder perguntas relacionadas não só à teoria, mas também à história do xadrez. Nesse caso, se ele não possuir uma boa base de conhecimentos históricos, esse enxadrista de destaque vivenciará uma das seguintes situações constrangedoras: ou não saberá responder a pergunta, ou, o que é pior, a responderá de maneira equivocada, transmitindo ao público informações incorretas sobre o xadrez e, em ambos os casos, terá desempenhado mal o seu papel de divulgador do nosso querido esporte.
Além disso, o estudo da história do xadrez, quando realizado de modo consistente, confere ao jogador pesquisador certa erudição, distinguindo-o do jogador comum. É claro que, para muitos, a aquisição dessa erudição voltada para a história do xadrez parecerá inútil, sem relevância. Tal pensamento é compreensível e natural, afinal de contas estamos em um país ainda atrasado intelectualmente, em que uma parcela da população, não se contentando em viver na ignorância, chega a idolatrá-la. Porém, acredito que toda forma de conhecimento é válida, pois, tanto na vida acadêmica quanto na vida profissional, e mesmo na vida cotidiana, frequentemente nos deparamos com situações em que ter estudado faz a diferença. Nesse sentido, estou inteiramente de acordo com a afirmação do filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626): “Conhecimento é poder”. Com efeito, o conhecimento, ao aumentar o potencial e as habilidades das pessoas, permite que elas façam coisas que não poderiam ser feitas sem ele (escrever este artigo, por exemplo, é uma delas).
O estudo aprofundado da história do “Jogo dos Reis” – outro nome pelo qual o xadrez é conhecido – pode nos livrar de algumas armadilhas, nas quais, por outro lado, caem facilmente aqueles que têm apenas um conhecimento superficial da matéria. Um exemplo simples costuma ocorrer quando se pergunta a um enxadrista onde surgiu o xadrez. Sem hesitar um segundo, como se estivesse diante de uma pergunta muito fácil, o enxadrista hipotético provavelmente responderá que o xadrez surgiu na Índia. Correto? Não, errado!!  A história nos mostra que o que surgiu na Índia foi o ancestral do xadrez, o chaturanga, palavra proveniente do idioma sânscrito e que significa “exército formado de quatro membros”, uma alusão as quatro divisões que formavam o exército indiano na antiguidade (elefantes, cavalos, carros e soldados a pé).
Fica claro então que o jogo que hoje conhecemos como xadrez não surgiu na Índia, pois ainda se passariam muitos séculos até que ele atingisse o estágio em que se encontra atualmente. Vejamos então um breve resumo desse percurso histórico: tendo se originado na Índia, o ancestral do xadrez (chaturanga) foi levado para a Pérsia, região onde hoje se localiza o Irã, sofrendo modificações em suas regras e transformando-se no chatrang, já mais parecido com o xadrez atual. Algumas centenas de anos mais tarde, quando os muçulmanos iniciaram sua expansão pelos continentes vizinhos, eles penetraram na Europa meridional através do norte da África, levando consigo o shatranj, palavra árabe usada para designar o jogo. Uma vez na Europa, o shatranj espalhou-se rapidamente, passando por novas mudanças, não só nos movimentos das peças, mas também no nome das mesmas. É assim que, por volta do ano de 1475, provavelmente na Espanha, nasce o xadrez moderno, produto de uma evolução em suas regras realizada com a contribuição de diversos povos, como nos explica David Shenk, em seu livro O jogo imortal:

Na realidade, o jogo não foi inventado de uma vez só, durante um acesso de inspiração de um único rei, general, filósofo ou mago da corte. Em vez disso, é quase certo ter sido (assim como a Bíblia e a internet) o resultado de anos de ajustes, por um grupo amplo e descentralizado; um trabalho lento realizado por uma inteligência coletiva” (Op. cit., 2007, p. 29).

Seja como for, o fato é que o xadrez é, na minha opinião, uma das maiores invenções da Humanidade, e sua história é tão rica, bela e fascinante como o jogo em si. Por essa razão, o enxadrista não se deve privar de conhecê-la; deve, ao invés de se limitar ao estudo da teoria, complementá-lo com o estudo da história, convertendo-se, dessa forma, em um jogador completo. Quanto à página que pretendo criar, tão logo esteja pronta irei divulgá-la entre os colegas enxadristas, e se eu conseguir que alguns deles passem a demonstrar mais interesse pelo aspecto histórico do xadrez, meu trabalho terá valido a pena.


REFERÊNCIAS


LASKER, Edward. História do xadrez. Tradução de Aydano Arruda. 2 ed. São Paulo: IBRASA, 1999.

SHENK, David. O jogo imortal: o que o xadrez nos revela sobre a guerra, a arte, a ciência e o cérebro humano. Tradução de Roberto Franco Valente. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

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