sexta-feira, 31 de julho de 2020

COM UM SEGUNDO DESSES, ATÉ EU!


A literatura enxadrística mundial foi, ao longo dos anos, enriquecida por uma grande quantidade de histórias, relatos e anedotas, baseadas em situações vivenciadas (ou fantasiadas!) pelos jogadores e cronistas do nosso esporte, e uma das coisas que mais me causa prazer é justamente pesquisar a literatura enxadrística em busca dessas histórias e curiosidades. Para aqueles que, como eu, gostam de ler histórias interessantes e engraçadas envolvendo enxadristas famosos, recomendo fortemente a leitura do excelente livro do GM Yasser Seirawan, intitulado Duelos de xadrez: minhas partidas com os campeões mundiais, em que o autor, com o estilo agradável e divertido que lhe é peculiar, consegue mesclar na medida certa as análises e considerações teóricas acerca de suas partidas com relatos dessa natureza. O "causo" que iremos apresentar hoje aos leitores foi extraído do referido livro, e é contado por Spassky. Trata-se de uma história engraçada, que reflete a importância de se ter um bom "segundo". O segundo, para quem não sabe, era uma espécie de auxiliar, que ajudava o enxadrista no treinamento, na preparação de variantes de abertura e na análise de posições de partidas adiadas. Atualmente, com o advento dos superprogramas de xadrez para computador, a figura do segundo já não tem a mesma importância que teve no passado, mas devemos lembrar que os Grandes Mestres da elite mundial ainda hoje costumam contar com uma equipe de auxiliares, que os ajudam no seu treinamento e na preparação para os torneios. Pois bem, o episódio transcrito a seguir ocorreu na época em que Spassky era o campeão mundial de xadrez, ou seja, no período entre 1969-1972. Vamos ao relato:

"Era um Campeonato Soviético. Isso significava que também havia um Campeonato Soviético Feminino acontecendo simultaneamente. Eu estava no refeitório/restaurante com meu segundo, Isaac Boleslavsky. Estávamos jantando quando uma mulher veio sentar-se com a gente. Ela estava com raiva. Muito zangada. Era evidente que tinha perdido sua partida naquele dia. Ela implorou que Boleslavsky a ajudasse na próxima rodada.
Boleslavsky acenou, concordando. (Ele respirou fundo, puxando o ar pesadamente pelo nariz – Boris imita o segundo.)
‘Com quem você joga amanhã?’, Boleslavsky perguntou. ‘Com a fulana de tal’, veio a resposta.
(Respiração profunda e lenta pelo nariz.)
‘Ela vai jogar 1.e4.’
(Respiração profunda e lenta pelo nariz.)
‘Você vai jogar 1...e5.’
(Respiração profunda e lenta pelo nariz.)
‘Ela vai jogar 2.Cf3.’
(Respiração profunda e lenta pelo nariz.)
‘Você vai jogar 2...Cc6.’
(Respiração profunda e lenta pelo nariz.)
‘Ela vai jogar 3.Bc4.’
(Respiração profunda e lenta pelo nariz.)
‘Você vai jogar 3...Cd4.’
(Respiração profunda e lenta pelo nariz.)
‘Ela vai jogar 4.Cxe5.’
(Respiração profunda e lenta pelo nariz.)
‘Você vai jogar 4...Dg5.’
(Respiração profunda e lenta pelo nariz.)
‘Ela vai jogar 5.Cxf7.’
(Respiração profunda e lenta pelo nariz.)
‘Você vai jogar 5...Dxg2...’
Eu, é claro, acompanhei a conversa atentamente. No dia seguinte, a mesma situação. Desta vez a mulher chega correndo no restaurante e vai até nossa mesa extremamente entusiasmada. Ela vem até Boleslavsky e lhe dá um beijo na boca, agarra suas bochechas e diz: ‘Muitíssimo obrigada! A partida transcorreu exatamente como você disse! Eu venci brilhantemente’. Daí, a mulher vira-se para mim, olha-me de cima a baixo com uma cara de nojo e diz: ‘Hã! Com um segundo desses, eu também poderia ser Campeã Mundial!’” 😅😅


GM Isaac Boleslavsky (1919-1977)

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